Ely Carter
O telefonema

Vera nestes meses tinha se refugiado no jardim de casa e na cozinha. Entre um vaso de flores e uma panela, uma muda nova
de planta e uma nova receita, ficava ali no seu ângulo, não se escondendo, mas tentando resolver dentro dela como poder reagir para encontrar forças e dar continuidade.
Não se anulou, mas tentou aproveitar o tempo ligando para as amigas. Nossa, fazia tanto tempo que não ligava para as meninas. Entre um telefonema e outro, dava uma espiada no forno, que produzia pães, doces, bolos, pizzas.
Já que os bares estavam fechados, bares estes considerados sagrados pelos italianos apaixonados pelo café, pelos ‘croissants’ com geleia de fruta, ela resolveu preparar estes em casa e doar para o pessoal da proteção civil. Aqueles anjos que auxiliavam dia e noite os hospitais, transportando os doentes.
Mas não bastava, ela sentia que tinha que fazer mais, um arranjo de flor comprado online e enviado a uma sua amiga que morava sozinha, não bastavam quilos de bolos e tortas doados, Vera sentia que tinha que fazer mais, tinha que fazer companhia.
Entao resolveu pegar a lista telefónica que estava lá, empoeirada e procurar os nomes das pessoas que moravam na sua rua. Eram seus vizinhos, mas, na verdade, eram desconhecidos, gente que se cumprimentava somente com um olhar ou sorriso de cortesia. Ali, titubeante diante do telefone, meio que preocupada com qual poderia ser a reação das pessoas, repassou o discurso e discou.
To, toooo, toooooo, o telefone chamou três vezes. Ninguém atendeu. Vera colocou o telefone no gancho.
Próxima tentativa, too, tooooo, toooooo, Alo.
Coração palpitou naquele momento, Mas Vera respondeu.
"Boa tarde, o meu nome é Vera, moro aqui no 21, encontrei o seu número na lista telefónica, moramos na mesma rua, eu não estou vendendo nada, eu também estou em quarentena e pensei que outras pessoas talvez estariam sozinhas, talvez estariam disponíveis para bater um papo com uma desconhecida.
A voz do outro lado, de uma pessoa pragmática e comunicativa, talhou curto e grosso: não, obrigada. E desligou o telefone.
Vera engoliu seco. Pensou em como é difícil fazer uma chamada telefónica. Tomou um gole de agua e escorrendo o dedo, por um minuto olhou as unhas, como estavam crescidas e discou o próximo número.
Too, too, too o – Alo, quem fala?
A voz do outro lado era tremula, delicada, feminina.
Boa tarde, o meu nome é Vera, não estou vendendo nada, moro aqui no número cívico 21, na mesma rua, encontrei o seu número na lista telefónica, gostaria de saber se estaria disponível para bater um papo com uma desconhecida.
“Oh minha filha, se você mora nesta rua como se chama o dono da quitanda que tem na esquina? " Perguntou a senhora que apesar da voz tremula, tinha os neurónios bem sólidos!
"Certamente, o seu Alceu è o dono da quitanda, vende verduras e frutas de ótima qualidade, mas é conhecido pela ricota que ele recebe na segunda-feira de um pastor aqui das redondezas. " - respondeu prontamente Vera.
" Ok você realmente mora aqui, mas diga-me, em qual casa mora? " Perguntou a senhorinha.
"Moro na quarta casa geminada, de portão verde - pistache, a senhora se lembra?" — respondeu Vera.
"Sim, lembro-me de uma casa de portão verde, se verde-pistache são outros quinhentos.
Ok, podemos falar, o que são alguns minutos de conversa para quem passa 24h do dia esperando por migalhas de relações humanas? “ Disse a senhora.
Vera perguntou-lhe como estava passando as jornadas e ela disse que fazia palavras-cruzadas, assistia tv. Uma vez por semana passava um rapaz que lhe trazia a despesa em casa, que era feita online pelo filho, que vivia na Inglaterra e visto que as fronteiras estavam fechadas e a sua esposa tinha acabado de dar à luz, não podia visitar a mãe. O contacto com aquele rapaz do supermercado que trazia a despesa era o seu único contacto nestes dias que pareciam não ter fim. Antes disso, ela sempre saia de casa, todos os dias para dar um passeio, manter os ossos “oxigenados”, porque para Luísa o sol era oxigénio para os ossos, dizia que tinha sonhado com a primavera, sair de casa nestas jornadas coloridas e “tirar o mofo” da carne depois do longo inverno, mas que infelizmente não podia.
Vera contou-lhe do seu jardim, dos seus bolos, da sua casa. Que vivia sozinha, era viúva, mas não tinha filhos. Disse que passava o seu dia a cozinhar, a escrever e a cuidar das flores que estavam desabrochando. O seu trabalho era fazia desde a casa, mas que eram tempos difíceis, ninguém lia mais, as pessoas estavam tentando aplacar a tristeza através de chamadas online. Os seus clientes tinham fechado as portas e o trabalho tinha se reduzido muito. Não se traduzia mais documentos, pois as pessoas estavam tentando traduzir as emoções, as preocupações.
Para Vera as vezes significava que era muita intoxicação virtual, excesso de informação. Mas acreditava que as pessoas tinha capacidade de gerir a própria vida e relações, mesmo virtuais.
Ambas as mulheres ficaram ali, penduradas no telefone, discutindo sobre o que significa estar em casa, o valor da casa, do sentimento de pertencimento e da necessidade de se acompanhar neste percurso.
Vera sentiu o cheiro de queimado. “Oh meu Deus, o bolo, o bolo no forno. Aguarde um minuto só, por favor.”
Se levantou depressa, tirou o bolo do forno levemente queimado, pegou o telefone e do outro lado, Luísa se despediu dizendo que tinha tido a sensação que naquele dia os céus estavam inspirados e tinham-lhe presenteado com um punhado de emoções, e não migalhas da atenção de outros.
Vera se despediu, com a promessa de chamar de novo, mais uma vez.
