Ely Carter
Viagem de trem à Bolonha.
Vera saiu de casa antecipadamente, não queria chegar atrasada a estação e perder o trem para Bolonha. Precisava descer em Bolonha e pegar outro para Ferrara.

Eram sete da manhã, as ruas ainda desertas, se ouvia somente o tic, tac do seu salto. Estranho cruzar o caminho com uma ou outra pessoa mascarada. Dava uma sensação de medo, misturado com curiosidade.
Na estação tudo tinha mudado. Percursos novos tinham sido definidos e eram evidentes pelos adesivos colocados estrategicamente a vista das pessoas, demarcando distancia de segurança e o caminho a seguir. Seria difícil esbarrar em alguém nestas condições.
Na plataforma indicada o trem estava la, quilométrico na sua impetuosidade de cortar o vendo de modo rápido e implacável. O trem, que atravessava Itália de norte a sul. Nos vagões, enormes etiquetas indicavam por qual porta entrar e por, qual sair. Dentro do mesmo, outros adesivos exigiam que o lugar a sua direita tinha que ser deixado livre, não para outro passageiro, mas em obediência à lei: distancia de segurança.
Vera se sentou, esticou as pernas, pois a sua frente não tinha e não poderia se sentar ninguém.
O seu olhar foi capturado por uma senhora que certamente era proveniente da Índia. Os seus véus leves e coloridos, juntos a máscara, pareciam não incomodar, mesmo com aquele calor abafado daquela manhã. Vera sentia que estava para desmaiar de tanto calor. Talvez tivera caminhado rápido demais para chegar a estação por isso estava derretendo.
O trem partiu, no início meio preguiçoso, mas depois recuperou o espírito para o qual tinha sido projetado, velocidade.
Em uma das estações entrou um senhor, idoso, teve dificuldade para subir os degraus, empurrou com os cotovelos as portas no interior do trem, tipo porta saloon, e se sentou de frente a Vera deixando vazio o lugar a sua direita. Ela com a sua direita livre e ele com a sua direita livre, olhares cruzados.
Nas próximas estações a situação era sempre a mesma, uma sinfonia de gestos de gentileza flutuava naquele trem. As pessoas falavam baixo, com aquela timidez para não perturbar o outro. Estranho este comportamento porque geralmente o ambiente dentro dos comboios é bem barulhento.
Vera ali com os seus olhos colados num livro, de vez em quando olhava a paisagem. Em um destes momentos teve o coração pescado de surpresa pela vista de um campo de girassol cultivado, lindo, iluminado. Mais a frente, campos de trigo bronzeados pelo sol. Embora o mundo tivesse parado a natureza tinha continuado o seu trabalho, enfeitar o mundo.
Tocou o celular e ela atendeu, era o cliente querendo saber a que horas ela chegaria a Ferrara. "As 10:47 se não tivermos problemas". respondeu ela.
O homem a sua frente disse: eu também estou indo a Ferrara. Vera olhou assim, um olhar que era um mix de perplexidade e surpresa, afinal de contas não lhe interessava saber para onde aquele homem estava indo.
“Estou indo encontrar o meu irmão, o único que sobrou.” — disse ele.
Aquela declaração desmontou o desinteresse de Vera, que decidiu perguntar como assim o único que sobrou.
" Sabe moça, restou somente este irmão. Perdi dois nos dias críticos da pandemia, e finalmente hoje posso visitar este, não sabe o quanto sou grato. Imagina, eu poderia ter ficado sozinho, mas ainda tenho um irmão com qual passar um pouco de tempo.” - disse ele.
Gratidão e senso de reconhecimento que o tempo é reduzido.
Se apropriar do próprio tempo durante a quarentena tinha feito Vera refletir sobre tantas coisas: O trabalhar em casa que não significava ficar de férias, mas otimizar o tempo e dar respostas. Vera não tinha família, mas tinha amigos com os quais procurou estreitar os laços com mil mensagens e telefonemas.
Ela ficou ali com o seu livro na mão, paralisada diante daquele homem que lhe falava que o seu sentimento agora era um novelo de lã embaraçado por um gatinho brincalhão. Era preocupado com o peso pago pelo país em vidas humanas e o desfecho desta batalha na economia real.
"Percebo que as pessoas estão com medo, embora a quarentena tenha passado, as pessoas continuam em quarentena dentro, enclausuradas no medo desta nova realidade. Mas a gente precisa sorrir com os olhos, tudo será diferente e será doloroso, mas precisamos aprender que vai passar, teremos de volta a nossa liberdade, por enquanto, devemos deixar livres os nossos olhares, são estes olhares novos sobre esta nova realidade que vão romper os grilhões do medo.
“Chegamos em Bolonha”, disse o velhinho. “Desejo-te liberdade minha filha, liberdade”.
Pelas rugas formadas nos cantos dos olhos, se via que por baixo daquela máscara tinha um sorriso. Vera sorriu.
